sexta-feira, 25 de junho de 2010

VIDA SUFICIENTE

“(…) só tenho a te oferecer a minha insuficiência,
porque suficiente só se é mesmo com o outro.”
(n/a. mito grego)



Disse um pensador que experiência não é o que acontece, mas o que fazemos com o que nos acontece (Pascal). Pois com estes dois aconteceu em um castelo.



Palmela, chama-se o dito; está suspenso nos ares portugueses, com vista para horizontes diferentes e sustentado por séculos de peripécias lusas.



E olha que essa gente aprontou pelos sete mares...



Então, este castelo data dos idos de 1.400 d.C. e, acima dos bons e dos maus, foi cenário de um almoço abusivo, de tão extraordinário.



Almoço a dois. Dois  velhos amigos, mais jovens que o século passado e dispostos a recuperar no além-mar as memórias familiares. Viajavam há algumas semanas por Portugal e deram com essa fortaleza moura (depois mosteiro) na auto-pista para Setúbal. Resolveram parar por um par de horas e, sob um frio déspota, visitar Palmela.



Circularam sobre pedras porosas da História e contemplaram à distância a pele do mar: prata à direita, arrepiada e azul, à esquerda. Encantados, os velhos amigos cruzaram com outros visitantes como se fossem nuvens e com sabedoria tomaram as horas a seu favor — esse tempo no qual o tempo não vem ao caso — e viveram a marginalidade merecida das viagens.



Vale dizer que, naquela tarde, os ânimos entre os dois não estava linear; por isso o dia prometia ser perfeito! Pois que os altos e baixos na temperatura afetiva humanizam as relações e tornam perfeitas as imperfeições mais banais.



Àquela altura, um resmungava o almoço em Setúbal que quase estaria comprometido, devido ao horário restrito das cozinhas portuguesas; o outro, teimava em caminhar de torre a torre como se estivesse no seu deserto interior.



Quando o primeiro, Carlos, estava já escarlate de fome raivosa e pronto para o bote, Leonel, o amigo e parceiro em território português, apontou para a entrada do castelo, ora transformada na entrada da pousada. Com voz de berço, Leonel abriu seu leque de argumentos em favor de seguirem na visita, cuidando de destacar a possibilidade do restaurante dali ser bom. E a cozinha funcionar, o principal.



Feito o cálculo das horas, a contragosto, Carlos cedeu à visita da pousada; mas o humor de ambos fazia cada vez mais ziguezagues.



À porta da pousada, Leonel saudou com entusiasmo o requinte no restauro do castelo, a beleza dos ambientes, o clima medieval com ares modernos e, quase sem repertório para melhorar o ânimo entre os dois, denunciou a placa à frente – RESTAURANTE.



Carlos firme e reto foi na direção indicada, mas estancou à entrada do dito cujo. Leonel, no seu rastro, rastreou o olhar extasiado do amigo e selou a paz : “pronto; aqui vamos fermentar nosso bem-viver”.



Sem esperar um data vênia, deslizou para dentro de um grande e clássico salão, onde toalhas de linho acolhiam serviços de mesa dignos dos reis de outrora. Carlos o seguiu sem protestos ou considerações. Uniram o inevitável ao agradável.



Luzes e aromas fizeram química com a música ao fundo – literalmente, Mozart para os ouvidos. Uma sucessão de prazeres à mesa foi serenando os olhares, os assuntos, as esperas. Nos intervalos, um e outro reconheciam mutuamente o privilégio de estarem juntos há tantos anos e também ali, entre muros.



Tal serenidade, promovida pela beleza, seguia uma ementa sem prazo nem recurso : desfilaram à frente dos convivas, em pequenas porções, na entrada, patê de gambas e ervas, queijo com marisco, mais, chouriço e salame artesanais. Como companhia, pão de estalar os desejos, manteiga e azeitonas da terrinha. Em seguida, foi servida uma sopa de cebola gratinada com queijo de São Jorge, que faria este último descer do cavalo e se ajoelhar aos pés do dragão.





Naquela altura etílica, ambos só não embarcaram para a quarta dimensão porque a realidade materializou-se num lombo de bacalhau grelhado com migas de grão de bico e espinafre refogado, ladeados de azeite e alho assado. Cheiro e gosto de vida plena.



— “Isto sim é uma missa !” , confessava num remoto mosteiro medieval o devoto Leonel.


— “Mais vinho, amigo ! Por favor. Porque não ter muito juízo é a sabedoria da velhice”, entusiasmou-se o agora camarada Carlos.



E por falar em vinho, a maratona alcoólica tinha nome e sobrenome, lugar e data : Tinto Regional Serras de Azeitão, Bacalhoa, safra 2008.



Setúbal foi lembrada apenas como referência ao banco nacional que honrou a conta; e a grande decisão não era mais para onde ir, mas quem manteria a linha reta à direção do carro alugado.



— “Com você, impossível ! Não tens condições de dirigir nem pornochanchada”.

Mônica Sydow Hummel

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