sexta-feira, 25 de junho de 2010

A AIDS E O POETA

Alberto Manguel



Há alguns anos, os jornais anunciavam que o governo da África do Sul estava criando um programa de importação e produção de medicamentos de baixo custo para tratar pacientes com aids. Quase quatro anos depois da notícia, a Associação de Indústria Farmacêuticas, que representa vários dos laboratórios mais importantes da Europa e da América do Norte, abriu um processo no Supremo Tribunal de Pretória, no qual alegava que a lei sul-africana que implementara esse programa — uma lei promulgada por Nelson Mandela — ia contra os acordos internacionais de copyright e patentes, cujo objetivo consiste em proteger os direitos dos cientistas, dos artistas e dos escritores.



Hoje na África do Sul (outubro de 2004) há 4,2 milhões de pessoas infectadas com o vírus HIV, cerca de 10% da população, maior porcentagem em todo o mundo. Elas não podem ser tratadas, por razões puramente econômicas. Um ano de medicamentos para a aids custa, na Europa ou na América do Norte, entre 20 mil e 30 mil dólares. Essa soma na , na África (e na maior parte da Ásia e América do Sul), está muito além dos sonhos de um simples mortal. No entanto, as empresas farmacêuticas locais conseguiram produzir medicamentos genéricos por uma fração minúscula do preço, em torno de U$400 por ano de tratamento.



A reação da maior de todas as empresas farmacêuticas, GlaxoSmithKline foi declarar solenemente que “o sistema de patentes deve ser mantido a qualquer custo”. A qualquer custo.



Pode-se argumentar que sem o investimento financeiros dessas empresas a pesquisa científica seria impossível. Para que se produzam novas descobertas, é preciso convencer os que têm dinheiro a investir em pesquisa e, para conseguir que os que têm dinheiro invistam em algo, é preciso convencê-los de que vão ter lucro com o investimento. Muito lucro. E que garantia melhor haveria nesta terra do que uma doença que leva à morte, e a vontade de vencê-la?



Portanto em nossa época a tentação de instalar uma companhia farmacêutica é, evidentemente, muito forte. Os motivos que impulsionam essas empresas não são o que se poderia chamar de filantrópicos: a vocação de curar não tem um lugar prioritário em sua decisão.



Há uma iluminura francesa do século XVI, Chants royaux du puy de Rouen, que retrata Cristo como um boticário, entregando o elixir da vida eterna a Adão e Eva. Não acredito que os membros do conselho administrativo da GlaxoSmithKline conheçam essa imagem.



Há algum tempo, devido à pressão internacional, 39 das maiores empresas desistiram do processo contra a África do Sul. Os protestos e cartas divulgadas nas campanhas dos Médicos Sem Fronteiras e de outras organizações criaram o que uma das companhias farmacêuticas chamou de “publicidade excessivamente adversa”; assim, depois de analisar cuidadosamente os lucros obtidos por meio da usura e os lucros perdidos por uma imagem negativa, essas empresas, hábeis em matéria de publicidade, preferiram negociar. Mas a questão da legitimidade desses lucros pantagruélicos continua sem solução.



Como é possível estimular essas companhias a investir em pesquisa científica sem lhes entregar, em troca, as vidas de milhões de seres humanos? Deixo o problema prático de fundos, taxas e impostos para os bons economistas, e prefiro me concentrar em outro fator dessa equação: o contexto moral que permite que tais práticas prosperem.



Pode uma sociedade considerar, ao mesmo tempo, as urgências da ciência e o contexto no qual essa ciência se desenvolve? Brecht ironizou “Primeiro vem a forragem, depois a moral”. Pode uma sociedade atribuir, simultaneamente, a mesma importância à moral e à forragem. Ao éthos e aos negócios que nela existem?



Essa pergunta antiqüíssima aparece diversas vezes, em todas as eras e em todos os céus. Foi formulada quando Agamenon sacrificou sua filha Ifigênia em troca de ventos favoráveis que permitissem aos gregos navegar até Tróia.



Há um conto de Oscar Wilde em que numa cena o jovem rei, que se recusa a ser coroado com jóias obtidas â custa do sofrimento alheio, pergunta se, afinal de contas, o rico e o pobre não são irmãos, e a resposta que recebe é: “Sim, e o irmão rico se chama Caim”.

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