quinta-feira, 16 de outubro de 2008

TESTAMENTO

“Você não possui mais no mundo o grande espaço que ocupava antigamente.
Você não mete mais medo em ninguém.
O inferno aparece agora apenas no último ato.
Você não assombra mais o espírito dos homens.”

Paul Valéry (Meu Fausto)




Passei esta minha existência incerta entre o natural e o estudado, sendo comentado e até mesmo temido. Tive e tenho muitos apelidos e biografias; mas a verdade deste presente tempo é que sou um pobre diabo. Assim, com letra minúscula.



Não que me deixem de lado. Não. Fiz um bom trabalho; cresci em importância. E hoje estou presente nas variações desse mundinho humano: nas crenças, artes, literatura, política... Despertei até um certo ciúme em outras mais Altas apelações.



E de tanto conviver com tanta humanidade, acho que peguei seu jeito. Nos meus começos, meus diabólicos começos, tecia a desgraça, a mentira; me metia no meio das boas intenções para mostrar que havia o outro lado. E como me diverti com essas pequenas perversões...
Comigo boca não tinha voz, mas o timbre da culpa ou da indecência. Enroscava e me apertava nas grandes e nobres intenções com meu pensamento miúdo, como miúdas são as entranhas. Outras vezes, ficava metido na bruma da embriaguez do ego, e desconsertava o reto. Jogava areia nas ondas das grandes ações humanas, para que chegassem sempre morrendo na praia.



Visitei, tantas vezes, o peito carregado da nobreza, porque é nele que todo sonho cabe. E, claro, desacreditei a humanidade de seus sonhos. Tanto fiz e competente fui!



Mas isto é já lá passado. Passado humano, porque não me prendo nestes tempos medidos. Este meu passado de que padeço é, sim, o próprio fracasso. Desumanizei o mal...



Fiquei tão íntimo da indiferença humana, que não faço mais a menor diferença. Antes, esses homens viviam sem mim, este pobre diabo. Depois, séculos de glória tive e em rivalidade com o Emérito. Agora, vejo e experimento a decadência. A inutilidade.



Sabem o que dizem?; que “tenho muito o que aprender...”. Transformei-me numa biografia sem existência, sem vida. Fui à lona no pugilato dos valores humanos.



Tem mais, desconfio que humanizei. Até flato de anjo me sensibiliza... Então, antes que o nada se iguale a mim, deixo registrado em testamento que desembarco do mal, pois que já sou considerado de primeira geração. Ultrapassado.



E este pobre diabo que vos escreve, deixa à humanidade o futuro. Quanto a este, só Deus sabe!




“No final das contas, pode ser que não sirva mais para nada.
Eu fui construído sobre uma idéia errada,
segundo a qual as pessoas não são malvadas
o suficiente para se perderem sozinhas, com seus próprios meios.”

Paul Valéry (Meu Fausto)



Profª Mônica Sydow Hummel.

COLUNA SOCIAL

As chamadas “notas” são para se fazer notar. Mas há ainda, os avisos, comentários, fotos enfileiradas, tudo para dispor a vida social em seus retalhos. Seletivos, claro. As notas plantam os acontecimentos na conformidade que se quer ou espera, mas que não se tem ao fechar o jornal. Os avisos profetizam o que estará conforme no futuro próximo. Quanto aos comentários, contam breves histórias que as imagens autorizam; “...fulano conversa sobre a feira de livros com sicrana...”. A partir deles, é possível criar toda sorte de crônicas e contos, porque tudo é possível e nada é toda a verdade. Chegamos às fotos. Muitas. Coloridas e diversas. Tão naturais... Diante delas, não se deve buscar coerência com nossas vidas; são descontínuas, porém em harmonia com o bem-viver. Então, vejamos. Nesta primeira foto, empunhando copos e sorrisos, estão dois jovens. Mas não são os jovens da vida ordinária que freqüento; são jovens com traços e vestes dignos de resenha. Ali, cheios de contentamento em flúor, parecem desocupados da vida ocupada. Não são apenas dignos da embriaguez social, são merecedores de atenção viscosa, porque são personalidades de destaque. Atores de cinema, diz a legendinha. Em duas linhas a coluna informa os nomes, onde estavam, quais filmes gravam e porquê se divertiam tanto. Esta outra foto, menor, enquadra uma mulher que — ora vejam, que surpresa! — é linda, elegante e feliz. Outras pessoas ao fundo são apenas fundo. Novamente, nome, local, data e o registro de seu interesse em ficar entre colunáveis. Abaixo, duas fotos reveladoras. Na primeira, dois homens ilustres brindam ao champagne; e na foto ao lado, duas esposas de políticos folheiam um livro de boas maneiras sociais. Etiqueta. Qual social? Em ambas as fotos, percebo que sofrem de viver. E fico com a sensação de que padeço de vida. Num esforço para escapar das garras do tédio, fixo-me neste enquadramento da vida noturna que não desfruto, e bem sei. Faltam duas fotos. Grandes. Também alegres em sustentar copos e flashs, dois casais se espremem entre os limites da vida social impressa e se projetam, felizes de dar dó, às minhas vistas. Muitos nomes, local e... não deu o espaço. E na última foto — fácil de adivinhar — há um jovem e moderno casal, sem copos, com largos sorrisos, despreocupados, sustentando no braço paterno o filho. Transbordam de orgulho social. Esta criança me chama atenção, porque está cheia de enfado e isto não combina com a infância. Graúdos e miúdos mantém diariamente os desejos alimentados de soslaio, à noite, sob lua fria e irônica como testemunha. Nada viola o equilíbrio daquela vida em jornal, e eu me vejo como um alvo fácil para o esquecimento. Vai ver quando eu tiver legenda descarno o social.
Profª Mônica Sydow Hummel.

VERSADO EM MORTE

Estou morrendo! É isto, eu antecipo, estou morrendo! Você entendeu? Eu sei. Aparelhos e tristes olhares atestam. Sinto, como explicar?, um distanciamento desta consciência de seus membros; estão mais leves, ou menos meus. Vejo-os sobre a cama e lençóis, mas não os encontro em mim. Será isto a falência?
Um crescente e lento frio me dissolve nos seus braços... Não quero que me toquem. Ninguém. Não quero banho ou medicação. Deixem-me quieto! Tenho direito ainda de assistir esta desencarnação, o desprender-se daquilo que levei anos para acostumar, tolerar; desprender-me dessa figura agora tão estranha chamada vida.
Por que tantas visitas? Para que tanta audiência nestes metros quadrados de agonia? As expressões mal disfarçam uma pena protocolar, deslocada, ante ao meu penar. Talvez, o último.
Aqui chega...Vilarino. Trancou nos lábios sua carência de lágrimas a derramar por sua própria vida, esta que permanecerá, quente e contraditória. Mas tem um álibi — este féretro que logo percorrerá ruas vivas, quentes; te autorizo a usar-me para contrair e contrariar sua dor pessoal. Podes lastimar, chorar até. Eu não mereço mais do que essa hipocrisia, mas tens a ti para encarar sem tanta consideração.
E tu, Misericórdia? Veio irritar-me com um último adeus? Teimosa em ser a obesa da família; nosso monstro sagrado da irmandade, que padece nas profanas igrejas da cidade, qualquer cidade. Misericórdia que dobra joelhos de dia em nome do Senhor e também à noite por conta dos préstimos da beata mor que te seduz. Arrasta tuas carnes inflacionadas pelos altares templários e abre as mesmas carnes para o dilúvio feminino que tens. Chora por este quase-morto que de nojo te cobriu em vida.
Não acredito no que estes olhos meus, no derradeiro, têm ainda de codificar... Leonice. Tenho de reconhecer o poder cataléptico da morte. Enquanto evento, assisto, quanto é gregária, quanto desperta de fantasmas entre vivos. Ora vejam...Leonice, que se apoderou de bons e saudáveis anos de minha vida, travou lutas contra nós e nocateou-me frente aos filhos nos tribunais. Juntou-se a mim para impedir a realização de um propagado “nós”.
Claro; mas esta é uma versão de quem estréia o estertor, e não é momento de versar sobre o casamento que se escolheu. Leonice está muito bem, tirante este olhar de já vai tarde que dispara ao leito. O corpo a abandonou, é verdade, mas tem ainda um rosto faceiro, de grandes possibilidades, o que me obriga a reconhecer que a odeio! Entendeu? Desprezo esta sua presença tardia; tenho esta raiva última, que oxigena-me em vida final. Principalmente, porque vais ficar.
Feito um papagaio de pirata, surge junto dela Heitor, meu filho. O verdadeiro Heitor dos prazeres que tanto financiei. Chega com esta morte, meu filho, a tua fatura; desta vez, a vida irá te cobrar em dobro e não serei mais teu anteparo. Estou livre. Estou livre do teu peso alegre, sensual, que cadenciou minha falência. Inclusive emocional.
Gelado; eu sinto assim. Quase não me percebo num corpo, mas percebo outros corpos à volta. Muita contrição, toques em membros escravizados por sondas e soro, choros sutilmente contidos, socialmente liberados. Vez ou outra, picadas que não me atingem mais, que dão conta apenas das normas da medicina, que prometem a boa morte. Mas é sempre ela, a morte.
Quem é agora? Geína... A boa e prestativa Geína dos últimos tempos. Continua com seu olhar maternal, que aplacou meus constrangimentos em banhos e troca de fraudas diárias. Comoventes. A última mulher a me ter e alimentar, a quem devo um Muito Obrigado! Geína fez-me esquecer que era objeto de seu ganha-pão, mesma quando era hora, derramada hora, de recolher minha baba, o mijo, as lágrimas da vergonha de ainda viver.
No entanto, neste meu epílogo, eis que lamento renunciar à vida ou ser expulso da minha. Resisto sem forças, ignorante ainda do que seja, afinal, vida e morte. Compreendo, na última versão de mim, agora mesmo, o que é o egoísmo em forma pura.
E antes que tudo acabe e eu me transforme num verso impresso em placa de túmulo, tenho de dizer da minha decepção em Ti. Vejo que Você se cansou de sua deplorável cópia, ou vira a cara ao teu erro de projeto. É aqui, nesta morte que me tem por direito e dever, que entendo o quanto Tu não existe e assiste o fim. Vou finalmente expelir a solidão que me destes, vou aterrar-me na escuridão que evitei em toda minha medíocre vida. E estarei livre de Ti, de Tua possibilidade. Então, seja feita a Tua vontade.
Profª Mônica Sydow Hummel.