“Você não possui mais no mundo o grande espaço que ocupava antigamente.
Você não mete mais medo em ninguém.
O inferno aparece agora apenas no último ato.
Você não assombra mais o espírito dos homens.”
Paul Valéry (Meu Fausto)
Passei esta minha existência incerta entre o natural e o estudado, sendo comentado e até mesmo temido. Tive e tenho muitos apelidos e biografias; mas a verdade deste presente tempo é que sou um pobre diabo. Assim, com letra minúscula.
Não que me deixem de lado. Não. Fiz um bom trabalho; cresci em importância. E hoje estou presente nas variações desse mundinho humano: nas crenças, artes, literatura, política... Despertei até um certo ciúme em outras mais Altas apelações.
E de tanto conviver com tanta humanidade, acho que peguei seu jeito. Nos meus começos, meus diabólicos começos, tecia a desgraça, a mentira; me metia no meio das boas intenções para mostrar que havia o outro lado. E como me diverti com essas pequenas perversões...
Comigo boca não tinha voz, mas o timbre da culpa ou da indecência. Enroscava e me apertava nas grandes e nobres intenções com meu pensamento miúdo, como miúdas são as entranhas. Outras vezes, ficava metido na bruma da embriaguez do ego, e desconsertava o reto. Jogava areia nas ondas das grandes ações humanas, para que chegassem sempre morrendo na praia.
Visitei, tantas vezes, o peito carregado da nobreza, porque é nele que todo sonho cabe. E, claro, desacreditei a humanidade de seus sonhos. Tanto fiz e competente fui!
Mas isto é já lá passado. Passado humano, porque não me prendo nestes tempos medidos. Este meu passado de que padeço é, sim, o próprio fracasso. Desumanizei o mal...
Fiquei tão íntimo da indiferença humana, que não faço mais a menor diferença. Antes, esses homens viviam sem mim, este pobre diabo. Depois, séculos de glória tive e em rivalidade com o Emérito. Agora, vejo e experimento a decadência. A inutilidade.
Sabem o que dizem?; que “tenho muito o que aprender...”. Transformei-me numa biografia sem existência, sem vida. Fui à lona no pugilato dos valores humanos.
Tem mais, desconfio que humanizei. Até flato de anjo me sensibiliza... Então, antes que o nada se iguale a mim, deixo registrado em testamento que desembarco do mal, pois que já sou considerado de primeira geração. Ultrapassado.
E este pobre diabo que vos escreve, deixa à humanidade o futuro. Quanto a este, só Deus sabe!
“No final das contas, pode ser que não sirva mais para nada.
Eu fui construído sobre uma idéia errada,
segundo a qual as pessoas não são malvadas
o suficiente para se perderem sozinhas, com seus próprios meios.”
Paul Valéry (Meu Fausto)
Profª Mônica Sydow Hummel.